por Amaury Pontieri
Vinte e cinco anos após ter completado o curso de Jornalismo na USP, decidi voltar aos bancos da universidade e iniciei meu segundo curso de graduação, desta vez na área das exatas, em Ciência da Computação. Isso aconteceu no início de 2018 e envolveu uma história de transição da mentalidade de escassez para a de abundância que gostaria de compartilhar com você por ter sido muito enriquecedora, com potencial de lhe trazer insights do mesmo modo que trouxe a mim.
Ainda na adolescência, ganhei uma calculadora científica HP-11C de meus pais em uma época em que comprar um PC era uma aventura mais indicada para empresas do que para pessoas físicas. Aprendi a programar nela e também a usar suas operações com Notação Polonesa Inversa (ou RPN na sigla em inglês, de Reverse Polish Notation), que pode parecer muito estranha à primeira vista, mas que, uma vez que se acostuma, traz muitas vantagens em relação à lógica algébrica direta das calculadoras tradicionais.
O fato é que tive essa calculadora por muitos anos e gostava muito dela, mantendo ainda seu manual do proprietário. Mas, para minha suprema decepção, justamente quando considerei que seria muito bom tê-la como fiel companheira no curso de Computação, descobri que ela sumiu da gaveta em que a deixava no trabalho. Talvez por sua beleza ou por ser muito parecida com a financeira HP-12C, algum “amigo do alheio” deve ter se entusiasmado a levá-la consigo.
Durante algum tempo, fiquei remoendo a perda, mais pelo valor afetivo e menos pelo financeiro de uma calculadora antiga, uma vez que poderia comprar uma moderníssima HP Prime ou mesmo, de modo mais prático, baixar no celular ou notebook seu aplicativo. Psicologicamente, eu estava nadando no mar da escassez. Tinha perdido um objeto querido, que há muitos anos não era mais fabricado, e nada podia fazer para remediar esse fato.
Foi então que uma conversa com um amigo, engenheiro experiente e nerd qualificado, mostrou-me a fuga daquele beco sem saída. “Por que você não procura outra igual no eBay?”, me perguntou. Mergulhei então naquele site de leilões virtuais americano e, mais do que encontrar uma HP-11C impecável e comprá-la por uma pechincha, descobri algo infinitamente mais valioso lá: conhecimento.
Assim, fiquei sabendo que existem muitos exemplares de calculadoras vintage lá no eBay e que podem ser comprados com muita segurança, alguns 0 km, em caixa lacrada há décadas! Pesquisando mais, no site hpmuseum.org, conheci todas as outras calculadoras programáveis da chamada série Voyager da HP, que inclui ainda, além da 11-C, da 12-C e da 15-C, os raros modelos 10-C e 16-C, esta última uma calculadora com produção limitada, específica para minha área de estudo atual de Ciência da Computação! Para encurtar a história, com muita paciência, pesquisando muito e participando e trocando experiências on line, hoje não apenas recuperei a 11-C, por muitos considerada (e por mim também) a calculadora mais elegante e confiável já fabricada, como formei, com o status prazeroso de um hobby, uma valiosa coleção de calculadoras HP e manuais que contém, além de todos os modelos vintage acima citados, também uma calculadora gráfica HP Prime nova. Moral desta pequena fábula nerd de abundância: a reciclagem de um acontecimento péssimo, envolvendo perda e atolamento na mentalidade de escassez, pode promover não só a recuperação do que foi perdido, mas o acesso, por meio de algo imaterial e gratuito como é o conhecimento, a um repositório praticamente infinito daquilo que é de mesma natureza.